A sensação de chegar em algum lugar, de ter realizado alguma coisa, a certeza de ter feito, vem de responder ao impulso de algum lugar, de perceber um movimento acontecendo e deixar, deixar que um começo se insinue e seguir seus rastros. Já andou na areia? A areia guarda o trajeto dos seus passos, antes que o vento venha. Areia conta por onde seu pé passou. E quando penso na escrita retrospectiva de um processo, penso nesse movimento de girar as costas para olhar a fundura das pegadas deixadas e quais passos eu dei sob a força de um movimento chamado Maniva.
Eu nunca persegui a direção como um posto desejado na arte, não me doem as marcas não cumpridas se o corpo em cena achar caminho melhor de desprender a atmosfera e a energia desejada. Prefiro a sensação do que a fabricação, isso de cena ser igual todo dia pouco me interessa, gosto de acordar atmosferas e instalar elas, e expandir os caminhos disso. Daí que estranhei quando minha amiga, companheira de aventuras-disciplinas no curso de graduação da UnB, me chamou no meio de um almoço no Restaurante Universitário para ajudá-la a se reenxergar como atriz. Eu sempre preferi ser personagens do que assisti-los. Assistir é só coisa de enquanto não puder ser. Mas no meu assistir, eu compreendia vontades e desfazia nós criativos, eu sou desses de mudar os tamanhos das angústias, de soprar a preocupação e de botar a atenção no que merece mais cuidado. Isso eu não fiz, isso foi um lugar que os outros inventaram pra mim, de ajudar a destravar poéticas alheias, de provocar quando o jogo ameaça uma paralisia, de manter o universo de uma peça oxigenado, res-pirante. Isso eu descobri gostar e saber fazer, e foi esse saber-fazer que deve ter puxado minha amiga a enxergar em mim, alguém capaz de dirigir seu sonho, de dar massa, data e concretude pra uma vontade sem forma.
Era uma vez uma aluna que soterrada por disciplinas da licenciatura, se perguntava se ainda era atriz. Esse foi o começo, uma peça que tentaria responder essa pergunta: ainda tem uma atriz ali, dentro? E o que ela quer dizer, mostrar, contar, brincar-de-tornar-se? Melhor brincadeira humana, caminho mais lindo assumido por nossas imaginações. Minha amiga queria brincar de tornar-se…. como eu também. Amo brincar-trabalhar disso.
Para mim, toda a peça é lugar de manifestação de personagens. Personagem é a invenção humana mais linda e insuperável que existe. Esse é o meu crer, não procuro converter ninguém, mas essa é a minha brasa-mor.Então eu perguntava: partir de qual personagem, partir de qual quem para a gente entrar em ensaio e procurar um ”como” para esse quem se manifestar….
Eu gosto de acordar na imaginação, personagens mortos, esquecidos, mas cujos atos seguem bastante praticados, ecoados, ressoados, encontrados na doida dimensão do real. A humanidade combinou de chamar esse personagens de clássicos, porque o tempo repete eles com nomes e em épocas diversas. Os clássicos assombram porque atingem até quem desconhece ou desdenha deles. Eu pensei em Julieta, adolescente que rompe com a família, que simula a própria morte por ser insuportável ficar privada do toque do amor. Ela queria falar de amor, então pensei em Julieta e sua decepção quando despertou. Mas carecia de encant… É que o encanto tem que vir sincero da atriz para colocar as células a serviço desse outro quem. E ela então me veio com trechos de um poema, ”Os Três Mal Amados” de João Cabral de Melo Neto.
Poema gestando cena? 3 Vozes dando testemunho do mal-amor… e o que vem a ser isso de mal-amar? Farejava a desafio, li, olhei pra ela, ouvi ela lendo. Das 3 vozes do poema, uma me imprimiu mais forte, me pressionava mais a acontecer. Havia João, havia Joaquim e havia, havia Raimundo. E ouvindo Raimundo e os olhos famintos dessa amiga, Larissa. Eu topei, eu disse que sim e nos sims que dizemos, nascem os começos. Aqueles pontos onde a gente sente que um movimento maior que nós, mas dependente de nós, iniciou e precisa dar rumo e vai mudar nossa bússola também.
começou assim pra mim.